sobre ArtRio e feiras de arte

Causa preocupação o acesso à arte por intermédio da feira
A experiência, para o leigo que busca educação, acaba sendo, naturalmente, a de um shopping

em O Globo, por Luisa Duarte, 01/10/2012

RIO - Na última sexta-feira, Fernanda Torres publicou em sua coluna na “Folha de S.Paulo” um ótimo texto intitulado “Orgia”, no qual relatava sua primeira experiência numa feira de arte, ocorrida em uma visita à ArtRio no domingo, dia 16 de setembro. A atriz se dizia assídua frequentadora de exposições em museus e galerias, mas uma feira ainda era algo inédito até então. O título da coluna já nos faz imaginar o que ficou como impressão desta vivência primeira. Algo angustiante pela quantidade, pela pressa, pela impossibilidade de discernir os trabalhos, os artistas, os valores. Tudo em meio a um ambiente cheio e ruidoso.

Eu estive na feira no dia de abertura, destinado a convidados, sendo colecionadores, curadores e diretores de instituições aqueles que mais interessam de fato aos galeristas, que por sua vez são o motivo de a feira existir e seus principais clientes. Voltei ao mesmo local no domingo ensolarado para rever trabalhos e fotografar alguns para uma pesquisa. Ou seja, pude testemunhar as duas situações distintas, mesmo que na abertura bares e pista de dança com música alta já dessem ao local um ar de festa incomum em feiras de arte.

Indo um pouco além e pensando com o olhar de quem trabalha dentro deste universo, divido aqui algumas preocupações. O fato de a feira alcançar um público de mais de 70 mil pessoas não é ruim em si, ao contrário, mas chama mais uma vez a atenção para a forma como se cristaliza hoje no Brasil uma conjuntura na qual o mercado se torna o grande paradigma da experiência da arte. Instituições e museus seguem, na sua maioria, esvaziados de atenção e público, bem como o espaço para a crítica e o debate permanece rarefeito, destituído de valor. Uma feira de arte não é, definitivamente, o lugar para uma experiência primeira com a arte. Tudo ali realmente incorre para o fragmentado, para a velocidade que distorce a visão, para a quantidade que nos deixa sem memória do que vimos. Trata-se de um lugar para especialistas, que pode vir a ser um bom passeio para um público leigo mas interessado, entretanto não pode e não deve se tornar a baliza para o contato com a arte e o paradigma solitário que dita os todos os valores.

Antes de começar as duas semanas dedicadas à arte no país, com a abertura da Bienal de São Paulo, de dezenas de mostras e terminando com a ArtRio, escrevi um texto breve para este caderno no qual falava sobre a necessidade de contermos a ansiedade que estava por vir, buscando escolher ver menos para ver melhor. Ou seja, ir a uma mostra de arte não é como ir ver vitrines de um shopping. E a experiência da feira, para o leigo que busca educação, acaba sendo, naturalmente, a de um shopping, não porque tudo ali está à venda — são poucos os que podem comprar —, mas por que a quantidade e a falta de critérios é imensa e não é papel da feira educar o olhar do público. Este papel, vou repisar, está destinado às instituições, aos museus, às escolas em geral, ou seja, há uma ligação da arte e da cultura, com a educação e a formação de um país.

Um outro dado que chamou a atenção nesta segunda edição da ArtRio foi o imenso espaço destinando a uma mostra da Galeria Gagosian. Tudo ali soava como um gesto neocolonizado, de uma subserviência de nossa parte chocante diante dos que vêm de “fora”.

Fez parte ainda dos lances protagonizados pela feira uma coluna paga, publicada nesta mesma página do Segundo Caderno nas semanas que antecederam o evento e na semana seguinte ao mesmo. Colocar na mesma página de conteúdos editoriais, de críticas feitas por especialistas anúncios travestidos de textos assinados (todos de qualidade duvidosa, quando não prosaicos mesmo) é uma ação que finda por embaralhar o leitor, que corre o risco de não discernir o que é propaganda do que é conteúdo editorial de fato.

Se orgia foi o termo usado por Fernanda Torres para definir o que viu, e angústia a palavra para definir o que sentiu lá dentro, considerando pertinentes tais colocações, e enxergando a proporção desmesurada que o mercado alcança no nosso circuito de arte, eclipsando outras instâncias fundamentais, nota-se que algo está fora do lugar.

A via de acesso à arte pela qual todos temos a responsabilidade de trabalhar não deve ser esta em voga, qual seja a do boom, da euforia, da grife. Desejo que o mercado faça o seu trabalho bem feito, que a ArtRio tenha vida longa, aperfeiçoe-se ano após ano e tenha a humildade de aprender com os erros e as críticas. Mas cabe a nós parar, analisar e pensar quando o paradigma maior da experiência da arte se torna a feira de arte. Volto a frisar o que escrevi nesta mesma época do ano em 2011: a tarefa de construir um maior equilíbrio de forças dentro dos vários eixos que compõem o circuito da arte do Brasil se torna a cada ano mais premente, e o ano de 2012 deixa isso ainda mais evidente. Arte é para proporcionar uma segunda pele para o mundo, deixá-lo menos opaco. De situações eufóricas que findam por promover angústia, ansiedade e, quiçá, depressão, já estamos fartos.

>> link para publicação original em O Globo